Análise histórica da política indigenista no Brasil: ideologias, direitos e perspectivas

O homem desafia, coloniza e civiliza a Lua, Marte, Venus... o Sol.
Mas não percebe que o mais difícil é por o pé no chão do seu coração
E descobrir a alegria de conviver.
            [adaptado de “O Homem; As Viagens”, de Carlos Drummond de Andrade]

RESUMO

O presente artigo analisa a evolução das ações políticas e instrumentos incidentes sobre os povos indígenas no Brasil desde a pré-colonização no século XV. Dentre as ideologias presentes, destacam-se o integracionismo e o protecionismo, visões que, de certa forma, continuam permanentes nas ações indigenistas. Por outro lado, confrontando às referidas ideologias, a Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho reconhecem o direito dos indígenas de viverem segundo seus usos e costumes, revogando, assim, qualquer dispositivo legal que tenha como proposta integrar os índios na comunhão nacional. Diante das ações contraditórias frente a uma legislação moderna e atualizada, o julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol trouxe algumas incertezas, cujas condicionantes, se mal interpretadas, ameaçam promover um retrocesso na garantia dos direitos indígenas, em especial no que tange ao seu protagonismo e autonomismo frente a outras instituições nacionais.


Clique aqui para acessar o artigo original - em inglês - publicado pelo Center on Democracy, Development, and The Rule of Law da  Stanford University, Califórnia. Ou acesso-o aqui diretamente no sítio dessa universidade.
Clique aqui para acessar o material que foi apresentado na conferência "Human Rights of Indigenous People in Latin America" ocorrida em 08 Maio 2012 na Stanford University.

ABSTRACT

This is an analysis of the evolution of political actions and legal instruments imposed on indigenous peoples in Brazil since the pre-colonization in the fifteenth century. Among the political ideologies that stand out from the integrationism and protectionism. Integrationist ideology is seen as a beacon that lights the way and acts in the minds of Indians to constitute an ethnic nation state. However, a permanent recognition of indigenous rights is legitimated in the Federal Constitution of Brazil and in Resolution 169 of the International Labour Organization (recognized by Brazil). Both documents address the outdated Indian Statute. Discussions of the new Statute of Indigenous Peoples in National Congress began in 1991 and still no prospect of completion. The judgment of the approval of the Raposa-Serra do Sol Indigenous Land brought conditions that, if misunderstood, threatening a set back indigenous rights, particularly in terms of their role and autonomy. This episode demonstrated that the same interests and characters that expanded the colonial frontier over the past five centuries have not relented. Nevertheless, people that were once fooled by legal maneuvers use the same tools that created this society, even in the Brazilian Supreme Court, which is dressed up to satisfy Western egalitarian expectations, but which has not lost its  ethnic character. Social networking and bilingual education in the communities have strengthened indigenous societies and are making possible the organization of international legal instruments and movements that are claiming greater autonomy.

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Click here to access the material that was presented at the conference "Human Rights of Indigenous People in Latin America" held on May 8, 2012 at Stanford University.


INTRODUÇÃO

O presente texto considera como política indigenista toda ação exercida sobre os povos indígenas (ou originários), promovida por instituições externas a eles. No Brasil, inicialmente era efetuada pela Igreja Católica Romana e pela Coroa Portuguesa. Com a deslaicização do Estado, e independência do país, o Governo Brasileiro passou a ser o principal agente desse tipo de política. Mais recentemente, no último século, outras igrejas juntamente com organizações não-governamentais também passaram a promovê-la.
            Essas ações indigenistas tiveram distintas conotações ideológicas. Desde ações extremamente autoritárias e intolerantes, que promoviam a escravidão ou o genocídio (limpeza étnica), ideologias escravagista e genocidista, respectivamente. Como até mesmo ações pacifistas que promoviam a preservação total da etnia com seus costumes, tradições e instituições, a ideologia protecionista.
            No meio termo, a ideologia que mais se tornou evidente na política indigenista brasileira foi a integracionista, que pretendia a assimilação da cultura imperante pelos povos dominados. No decorrer de sua consolidação, este tipo de ação foi uma astuta forma que se travestia de pacífica, sob a batina do clero, mas com autoritárias técnicas de persuasão, que buscou a eliminação da diversidade étnica no território com vistas a consolidação de uma etnia nacional.
            O léxico traz como sentido do termo integracionismo a “atitude que se define pela defesa da integração de uma determinada comunidade minoritária numa outra de maior dimensão”, onde integração configura-se como “processo pelo qual uma pessoa ou um grupo se adapta a uma sociedade ou a uma cultura; assimilação; adaptação” (PORTO, 2011).
            Vilas Boas Filho (2003) afirma que a ideologia integracionista “tem por núcleo a idéia de que o índio estaria num estágio evolutivo inferior ao dos civilizados (…)”, e sua presença na legislação indigenista brasileira vêm no sentido de que estes indivíduos atinjam o mesmo grau de desenvolvimento, participando, enfim, da comunhão nacional.
            Dessa maneira, a integração é uma forma de política pública assimilacionista, que elimina a pluralidade étnica em favor de uma grande etnia nacional. Este processo é chamado pelo antropólogo Darcy Ribeiro de “transfiguração étnica”, e atinge todos os povos originários da América no decorrer do processo de colonização europeia (RIBEIRO, 1996).


I. As ideologias da política indigenista no Brasil

            O integracionismo na política indigenista brasileira está presente de fato desde as primeiras ações missionárias dos jesuítas no século XVI. Mas de direito, a partir do momento em que os europeus decidiram se apossar do território americano, no final do século XV, com as bulas papais que ‘autorizavam’ os reis de Portugal e Espanha a pilhar, esbulhar, submeter, escravizar, converter, dentre outras ações violentas, todas as terras e povos nelas encontrados.
            A visão européia de soberba perante outros povos é resquício do pensamento imperialista dos antigos romanos. A Igreja Católica, que se consolidou nos anos pós-queda do Império Romano, deu sustentação ao eurocentrismo, declarava-se como a verdadeira porta-voz de Deus, condenando outras manifestações religiosas como profanas, satânicas, heréticas ou pagãs. Assim, condenava à pena de morte pessoas adeptas de religiões politeístas, consideradas bruxaria ou magia negra, ou que contrariassem idéias da igreja, os hereges.
            Houve, inclusive, momentos em que autorizou as cruzadas, verdadeiras guerras santas contra povos adeptos de outras crenças monoteístas do Oriente Médio, como a judaica e a islâmica. Este poder supremo centrado na figura do papa – líder máximo da Igreja Católica Romana – culminou em tal ponto que eles chegaram a considerar suas decisões como manifestação divina. E, apoiados nisso, deliberaram sobre o destino de existência de muitos povos. Um exemplo dessa soberania sobre os povos está no Tratado de Tordesilhas, a primeira política européia incidente sobre os povos ameríndios, ou seja, a primeira política indigenista de direito, 'concedida sob as bênçãos de Deus, pelo seu legítimo procurador na Terra', conforme consta na bula Inter Coetera, de 04/05/1493, do Papa Alexandre VI:
“[...] por nossa mera liberalidade, e de ciência certa, e em razão da plenitude do poder Apostólico, todas ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por descobrir. [...] À Vós e a vossos herdeiros e sucessores [reis de Portugal e Espanha] pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro, assim como do vicariado de Jesus Cristo, a qual exercemos na Terra, para sempre, no teor das presentes, vô-las doamos, concedemos e entregamos com todos os seus domínios, cidades, fortalezas, lugares, vilas, direitos, jurisdições e todas as pertenças. E a vós e aos sobreditos herdeiros e sucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos por senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição [...] sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras e ilhas sobreditas, e os moradores e habitantes delas, e reduzi-los a Fé Católica [...]” (RIBEIRO, 2006: 40).

            Assim, os portugueses detinham autorização divina para serem soberanos em metade do Planeta, o que incluía parte do atual território brasileiro.
Durante os primeiros anos do século XVI (período pré-colonial), quando o país era chamado pelos portugueses de Terra de Santa Cruz, a relação com os nativos era pacífica, e nos primeiros mapas constavam os locais ocupados pelos indígenas, identificando seus territórios (ou terras). Mesmo sendo “soberano” sobre o território, o principal interesse português até então era garantir o monopólio do comércio de especiarias das Índias Orientais e algumas espécies americanas, como o pau-brasil. Para isso estabeleceu relações de escambo com os povos do litoral. Entregavam utensílios de metal (facões, tesouras, enxadas, machados, espelhos etc.) em troca de pau-brasil e outras espécies nativas.
Barreto Filho (2011) aponta que os primeiros povoadores não-índios do Brasil eram aventureiros, náufragos ou desertores, e buscaram se “indianizar” para sobreviver, relacionando-se com os povos nativos através do cunhadismo. Alguns se tornaram célebres e importantes na relação com Portugal, como João Ramalho (em São Paulo) e Diogo Álvares, o Caramuru, em Salvador. Não havia até então uma política indigenista integracionista de fato pelos portugueses.
            Porém a partir do início oficial da colonização, com a criação da vila de São Vicente em 1532, e a implantação do governo-geral em 1549 na cidade de Salvador, definitivamente passa-se a incidir sobre o território do já denominado Brasil¹ as leis e instituições lusitanas, e conseqüentemente o sistema escravagista, tão antigo na Europa.
Neste período, os indígenas do litoral receberam os primeiros impactos do contato com o europeu.  A política lusitana seguia o pensamento da Igreja Católica da época, que permitiu a escravização de africanos e ameríndios. Diversos indígenas foram escravizados já no século XVI. A política lusitana sobre os índios passa a dividir-se entre escravagista e genocidista, defendida pelos colonos, e a integracionista, promovida pela Igreja.
            A Igreja, principalmente através da Companhia de Jesus, instituiu reduções, missões ou aldeamentos, locais onde diversas mulheres e crianças indígenas eram convertidas ao catolicismo, reeducados na cultura cristã, e recebiam qualificações de ofícios da sociedade ocidental. Tornavam-se artistas, artesões, agricultores, sapateiros, carpinteiros, escultores, músicos, pedreiros etc. E mais do que isso, aprendiam a língua portuguesa e o latim, era o princípio de uma política integracionista no país, iniciada a partir de 1549, com o padre jesuíta Manuel da Nóbrega e seus discípulos, como José de Anchieta.
            Este trabalho de catequização fazia parte do plano da Igreja Católica e dos reis Ibéricos de dominar o vasto território americano sem para isso ter que enfrentar guerras violentas, por isso o foco nas crianças e mulheres. Deixando de lado os anciões e lideranças dos povos.
            Ao mesmo tempo em que a igreja “amansava” os índios, os colonos acostumados com a economia escravagista, mas sem condições financeiras para praticá-la, organizavam incursões ao sertão americano, para o aprisionamento de indígenas que fugiam do litoral ou que ainda não tinham provado do contato europeu. Os índios eram caçados e escravizados, seja em regiões onde não havia instituições européias, seja dentro das missões católicas.
A coroa portuguesa se posicionava vez ao lado dos colonos, outras ao lado das missões, e poucas vezes ao lado dos índios não cativados, e baixou diversas legislações para regular os relacionamentos entre colonos, eclesiásticos e indígenas.
Durante o século XVII legislações passam a oficializar o integracionismo como política indigenista. Em 1609, 1611 e 1680, legislações reconhecem a posse dos indígenas sobre algumas terras e a abolição de sua escravatura, com a condição de mantê-los sob a égide dos aldeamentos católicos (VILAS BOAS FILHO, 2003).
A política indigenista da Coroa toma partido em favor dos aldeamentos católicos e reprime de forma oficial as incursões escravagistas. No entanto, as lamentações dos colonos mais pobres que não tinham condições de adquirir escravo negro, procuravam justificar o cativeiro indígena.
            Alguns jesuítas chegaram inclusive a se posicionar junto aos índios muito além da integração, defendiam outro tipo de ação indigenista, algo muito mais próximo de uma autonomia dos povos, numa ideologia protecionista. Isso deu cabo em um conflito entre jesuítas e colonos.
            Este episódio teve como figura central o primeiro-ministro do rei, o Marques de Pombal, que instituiu grandes mudanças na política colonial portuguesa. Toda ação missionária dos jesuítas passou para o controle direto do Estado português, por meio da lei intitulada Diretório dos Índios (1755). Esta é a mais completa e firme legislação colonial que rememora a abolição da escravatura indígena, concede e reafirma direitos aos indígenas, como a posse à terra, e cria a figura do tutor, exercida pelo Diretor do Aldeamento.  Poucos anos depois, em 1759, a Coroa decreta a expulsão dos jesuítas de seus territórios e o confisco de todos os bens da Companhia de Jesus (PREZIA & HOORNAERT, 2000).
            O Diretório dos Índios foi um avanço à política indigenista no Brasil, tendo em vista que antes dele não havia um mecanismo institucional do Estado com firmeza que se dedicasse a questão indígena, era um assunto administrado exclusivamente pela Igreja, ou resolvido pelos senhores locais.
            A institucionalização trouxe maior garantia de sobrevivência aos indígenas, no entanto, era uma política de integração, onde gradativamente os indígenas perderiam suas raízes culturais e passariam a constituir a sociedade nacional como agricultores. Ou seja, o Estado assumiu o papel que a Igreja vinha desenvolvendo. Mesmo assim, muitas igrejas continuaram com suas atividades missionárias, e assumiram muitos aldeamentos promovidos pelo Diretório (RIBEIRO, 1996).
            O período imperial, primeiro momento do Brasil independente da Coroa portuguesa, foi caracterizado pela continuidade da política dos aldeamentos estatais, no entanto, cada vez mais enfraquecida. Chaim (1974) apresenta que o século XIX foi marcado pelo sucateamento dos aldeamentos, com o envio cada vez menor de recursos para a sua manutenção. Muitos indígenas abandonaram esses núcleos, os poucos que ficavam constituíam pequenos povoados de caboclos, ou seja, perderam o reconhecimento de sua identidade indígena. Enfim, o projeto integracionista do período colonial concluía o seu propósito: eliminou culturas indígenas sem a necessidade de guerras violentas.
            Vilas Boas Filho (2003) aponta que não houve citação de qualquer política indigenista nas primeiras Cartas Magnas do Brasil, seja na de 1824 (do Império), seja na de 1891 (da República Velha). O século XIX também é marcado por movimentos nativistas e românticos que buscam a construção da identidade nacional ao jovem país independente, alguns se remetem aos bandeirantes, outros buscam no elemento indígena o laço com a terra pátria.
            Será a partir desta discussão nacionalista, da busca do elemento formador da identidade brasileira que se consolidarão idéias de proteção aos índios, dentre os mais célebres debates estão o confronto entre Domingos José Gonçalves de Magalhães e Francisco Adolpho de Varnhagen, em pleno auge do Segundo Império; e o travado entre Candido Mariano da Silva Rondon e Hermann Friedrich Albrecht von Ihering, na República Velha. Este último que culminará na criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), inicialmente também com a função de localizar os trabalhadores nacionais.
            A ideologia protecionista passa a estar presente pela primeira vez na legislação brasileira, no entanto, é fundamentada em ideias etnocêntricas de que o indígena encontra-se em um processo de evolução anterior ao da civilização e, portanto necessitaria de tempo para que pudesse amadurecer e se integrar a comunhão nacional. Ou seja, é um protecionismo reservado, com propósitos de integração futura, mas não repentina.
            Diacon (2006) afirma que Rondon agia com base em sua ideologia positivista, e acreditava que “os índios não são racionalmente inferiores, mas estão vivendo em um estado diferente da evolução social”. O mesmo autor defende que o referido militar confiava que a combinação de raças, formaria homens mais aptos para pensar o amor, base do positivismo.
            Rondon, assim como os jesuítas do período colonial, tinha confiança de que por meio da educação poderia tornar os indígenas integrantes da sociedade nacional. Seu pensamento influenciou a formação dos primeiros indigenistas profissionais do Brasil, integrantes do quadro do SPI. Também dos primeiros antropólogos, como Darcy Ribeiro. Tinha como política o respeito à organização interna das sociedades indígenas, não interferir ou forçar um contato, a introdução de qualquer elemento estranho à comunidade era precedida de consulta aos líderes.
            Diacon (2006) afirma que Rondon “sentia o peso do erro histórico e compreendia que era hora da remissão dos nossos pecados velhos, reconhecendo as culpas que passam sobre a pátria”.
            Jaborandy (2011), por sua vez, coloca que Rondon descendia de Bororo e Terena por parte do pai, e Guaná por parte da mãe, portanto sua ligação sanguínea próxima aos indígenas provavelmente influenciou o seu pensamento, e trouxe uma revolução no universo militar.
            O SPI, órgão criado e gerido por Rondon, além de assumir a tutela indígena iniciada pelo Diretório dos Índios, instituiu uma nova figura jurídica, a demarcação de terra indígena, que mesmo não considerando o real espaço necessário à sobrevivência da etnia, garantia áreas reservadas aos indígenas e livres da ação do mercado fundiário, ou da reivindicação de propriedade por parte de posseiros. Assim, tinham como função proteger os indígenas da sociedade envolvente, ao mesmo tempo, protegia os colonos dos ataques indígenas (RIBEIRO, 1996).
            Apesar de alguns povos indígenas terem reconhecidas suas terras desde os tempos coloniais, muitos perderam por falta de conhecimento jurídico, pois eram forçados a assinarem documentações que passavam o domínio de suas posses, sem terem noção do que estavam fazendo na realidade, por desconhecerem o sistema jurídico nacional ou até mesmo a própria língua portuguesa. Por isso, a figura da tutelagem, reforçada no Código Civil de 1916 e presente no Estatuto de Índio de 1971, tem como uma das funções, evitar que os indígenas sejam ludibriados por esbulhadores.
            Curi (2011), no entanto, alerta que, ao longo dos anos, a tutela indígena foi exercida mais em favor do seu tutor do que do tutelado. Com isso, muitas etnias foram extintas, ou impactadas por grandes empreendimentos, vítimas de epidemias mortais, ou transferidas forçosamente. A autora destaca que “por outro lado, é importante considerar um ponto positivo desse instrumento: a possibilidade de anulação de um ato jurídico realizado de modo prejudicial à comunidade indígena”.
            A demarcação de terras indígenas, apesar de garantir uma porção fundiária aos indígenas, possibilitou que as áreas não demarcadas fossem utilizadas para a colonização agrícola, promovidas pelo próprio Estado. Assim, os recursos naturais necessários a sobrevivência daquela cultura indígena, foram depredados e, conseqüentemente muitas culturas indígenas, forçando-os a se integrarem à sociedade envolvente, praticando uma agricultura alienígena, e tendo que se enquadrar a uma economia desconhecida, empobrecendo-os, pois não tinham condições de competir com os colonos dentro de seu próprio universo. Dessa forma, o projeto de integração do índio, de enquadrá-lo como trabalhador nacional, atingia novamente o seu êxito. 
            Orlando Vilas Boas Filho resume a evolução legal do direito indígena brasileiro da seguinte forma:
a problemática que envolve as terras das comunidades indígenas já estava expressa na legislação colonial portuguesa desde o início do século XVII, nas Cartas Régias de 30//07/1609 e 10/09/1611 e, sobretudo, no Alvará de 01/04/1680, que confirmado pela lei pombalina de 06/07/1755, criava [...] o instituto do indigenato, consistente no reconhecimento dos diretos originários das comunidades indígenas sobre suas terras. Malgrado o silêncio das Constituições de 1824 e 1891 […], bem como da Lei de Terras (Lei n.º 601/1850), o fato é que o instituto do indigenato perpassou os séculos, tendo sido constitucionalmente recepcionado pela Constituição Fedral de 1934, a qual, em seu art. 129, pela primeira vez reconheceu a obrigatoriedade de respeito à 'posse da terra por indígenas que nelas se achem permanentemente localizados [fazendo parte, finalmente, da Carta Magna brasileira a partir de então] (VILAS BOAS FILHO, 2003).


II. Reconhecimento Permanente dos Direitos Indígenas

            O reconhecimento dos direitos dos indígenas no Brasil é algo ainda não consolidado. O Estado brasileiro, fruto de uma política européia de expansão econômica e territorial, ainda traz consigo um modelo de sociedade espelhado nas raízes daquele continente. A política de reparação etno-racial é reprimida pelo poder dos proprietários, detentores dos meios de produção, e da terra. Os indígenas, assim como os africanos, foram vítimas da expansão mercantilista vivida pela Europa do período pós-medieval.
            Yamada & Villares (2010) afirmam que a história de nosso país apresenta episódios de reconhecimento de direitos dos indígenas desde a chegada dos primeiros colonizadores europeus, no entanto, na maior parte das vezes, teve como intuito facilitar a apropriação de terras e recursos por estes. Por isso, Vilas Boas Filho (2003) coloca que o direito indígena no Brasil contemporâneo compreende “além da dimensão propriamente jurídica, aspectos históricos, antropológicos e sociais”.
            Curi (2011) destaca que atualmente as legislações incidentes sobre indígenas consistem basicamente na Constituição Federal de 1988, no Estatuto do Índio (Lei 6.001/79) e no Decreto 5.051/04, que reconhece a resolução 169/89 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
            A referida autora revela que uma das inovações na resolução 169 da OIT é o fato de considerar o direito consuetudinário, ou costumeiro, dos povos indígenas. No entanto, o subordina aos direitos fundamentais dos Estados e aos direitos humanos internacionais. Assim, “os direitos individuais relacionados à liberdade e à igualdade […] não têm extensão suficiente para proteger os direitos e interesses coletivos”.
            Ramos (1990) corrobora com esta visão, pois defende que a Declaração Universal  dos Direitos da Humanidade,  adotada e proclamada pela Organização das Nações Unidas em 1948 é, no fundo, “um ato de etnocentrismo”, pois apesar de ter surgido “como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações” reconhece o homem enquanto “indivíduo e não enquanto membro de um grupo”. Assim, quando este instrumento jurídico internacional define que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, a autora afirma que “seria julgar outrem por valores ocidentais”.
            Evidente que trata-se de um posicionamento polêmico, mas se faz necessário tendo em vista que muitas sociedades, indígenas ou não, possuem práticas que ferem este princípio de igualdade individual como forma de preservação da existência da própria coletividade enquanto grupo étnico diferenciado. Por exemplo, através do infanticídio, antropofagia, mutilações genitais, penas de morte... entre seus próprios membros étnicos.
            O Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), outra importante legislação indigenista, em seu art. 4.º, define os indígenas em três categorias: isolados; em vias de integração; e integrados. Curi (2011) destaca que, conforme esta legislação, “o caminho natural percorrido pelas comunidades indígenas seria sair do isolamento rumo à integração (…) uma vez integrados, os indígenas se tornariam 'brancos', perdendo seus direitos preconizados por legislação especial”, quando finalmente os Códigos Civil e Penal recairiam sobre estes indivíduos.
            Curi (op. cit.) afirma que a introdução do Capítulo VIII, disposto no Título VIII, (arts.  231 e 232) “foi uma das inovações da Constituição de 1988, que passou a garantir aos índios o direito de perpetuarem sua cultura, não mais querendo integrá-los à comunhão nacional”. Portanto, a atual Constituição Federal rompe com a visão integracionista, tornando ultrapassada a classificação dos indígenas em três categorias constantes no Estatuto do Índio, perdendo sua validade.
            Mesmo nesse Estatuto já transparece uma contradição entre as ideologias protecionista e integracionista, logo nos dois primeiros artigos :
Art. 1º. Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. [...]
Art. 2.º Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, […] para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos: […]
IV - assegurar aos índios a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência;
V - garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progresso;
VI - respeitar, no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes; […]
VIII - utilizar a cooperação, o espírito de iniciativa e as qualidades pessoais do índio, tendo em vista a melhoria de suas condições de vida e a sua integração no processo de desenvolvimento.
(Lei 6.001/07 – Estatuto do Índio – trecho dos Arts 1.º e 2.º – grifo nosso).

            Assim, transparece claramente que a política indigenista presente neste Estatuto tem o sentido da integração do índio ao processo de desenvolvimento e à comunhão nacional, respeitando seus valores e costumes. Uma contradição, pois possibilita a sua liberdade de escolha dos seus meios de vida e garantia de permanência em seu habitat, numa ideologia protecionista.
            Vilas Boas Filho (2003) alerta que embora o Estatuto “faça ressalva de que a 'integração' não implica perda dos usos, costumes e tradições culturais” a mesma legislação “abriu brecha para que se questionasse a própria identidade étnica” permitindo, inclusive, que seus direitos sobre os territórios fossem questionados.
            No entanto, o próprio Estatuto do Índio possibilita outras brechas para que as comunidades decidam se pretendem integrar-se ou não à sociedade envolvente. Opção que ficará mais assegurada com a promulgação da Constituição de 1988.
            Evidente que essa ideologia integracionista presente no Estatuto, e ausente na Constituição, demonstra que houve avanços na legislação, mas que somente será consolidada do ponto de vista jurídico quando for publicado o novo Estatuto dos Povos Indígenas. Lembrando que como destaca Curi (2011), o estatuto em vigor enfoca mais o indivíduo em detrimento da coletividade, fato que poderá ser resolvido com a publicação do novo Estatuto, que está em processo de discussão no Congresso Nacional desde 1991.
            Apesar do avanço legal, a cultura etnocêntrica presente em grande parte das elites nacionais e na própria sociedade é outro desafio a ser enfrentado pelos povos indígenas. Pois é comum ouvir-se os termos silvícolas, atrasados, bugres, primitivos, selvagens, como adjetivos pejorativos ao índio. Bem como jargões como: 'eles ainda vivem como índios!' Demonstrando que o imaginário do brasileiro ainda é de superioridade em relação aos povos originários.
            Além disso, conforme sinaliza Vilas Boas Filho (2003), “a Constituição de 1988 não pode ser concebida como uma panaceia no que se refere aos direitos dos índios […] pois ela também se insere no contexto de nossa modernização periférica, na qual o direito ainda não adquiriu uma autonomia sistêmico-funcional suficiente para implementar-se sem interferências diretas dos sistemas econômico e político”, e porque não acrescentar a própria mentalidade do povo brasileiro?

III. Demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol

            O caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol é emblemático no que tange a exibição do quadro atual da política brasileira indigenista e a mentalidade de nossa sociedade. Devido ao fato de se sobreporem diversos estatutos legais e interesses sobre as áreas em questão, pois além de ser o território originário dos povos Macuxi, Patamona, Tauperang, Wapixana e Ingaricó, a terra:
  • Está em região de fronteira;
  • Sobrepõem-se a uma unidade de conservação da natureza;
  • Possuía áreas cultivadas por plantações de arroz;
  • Abrange rodovia internacional que liga Manaus a Caracas na Venezuela;
  • É local estratégico para negócios da elite política roraimense.
            Segundo Curi (2011) a consolidação jurídica da situação se arrolou por mais de 30 anos, foi iniciada em 1977 e concluída em 2009, após julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), pois conforme elencado acima, a disputa abrangia interesses de diversos setores de nossa sociedade, todos com seus direitos garantidos pela Constituição e legislações em vigor.
            Yamada & Villares (2010) defendem que a conclusão deste processo expôs o STF como legislador positivo, devido as “chamadas salvaguardas institucionais, formuladas nas 19 ressalvas à ação do poder executivo e aos direitos dos povos indígenas. […] Algumas ameaçam retroceder o reconhecimento de direitos de minorias étnicas no país, na contramão de compromissos internacionais de direitos humanos assumidos, especialmente quanto à interpretação do direito originário dos índios sobre suas terras tradicionais”.
            As 19 ressalvas, segundo os citados autores, “pretensamente procuravam conciliar os interesses indígenas, a defesa nacional e a preservação do meio ambiente”. Mas se por um lado elas ameaçam os avanços jurídicos da questão indígena nacional, ela também reforça a legalidade de muitos pontos que eram frágeis até então.
            Yamada & Villares (op. cit.) afirmam que o caso “revelou também que os governos locais veem e promovem os indígenas como estrangeiros em seus próprios territórios”. Pois o processo apenas se deparou com a corte suprema devido a uma Ação Civil Pública, proferida pelo estado de Roraima em que contestava a legalidade do processo administrativo que homologou a demarcação contínua da terra indígena. Curi (2011) afirma que esta ação foi respaldada pelo poderio econômico dos rizicultores.
            Por isso que o grande mérito do reconhecimento da legalidade desse processo administrativo, além de respeitar a tradição jurídica do reconhecimento dos territórios indígenas e da não aceitação do esbulho como forma de aquisição de propriedade, demonstrou que não houve ofensa à soberania nacional na demarcação contínua de terras indígenas em faixa de fronteira, ou ameaça ao princípio federativo e ao desenvolvimento da nação. Bem como reconheceu a proteção dos povos e culturas distintas que compõem a nação brasileira (YAMADA & VILLARES, 2010).
            No entanto, os citados autores alertam que algumas incertezas também podem surgir em processos futuros de mesma natureza, pois a fixação da data de promulgação da Constituição de 1988 como marco fundamental pela corte suprema pode prejudicar analises de situações como aquelas em que comunidades indígenas foram removidas por convencimento das autoridades governamentais ou que fugiram da simples aproximação do não-índio ou de outros grupos indígenas.
            Além disso, as condicionantes 5, 6, 7 e 11 supõem que as comunidades indígenas não poderiam manter a autonomia de suas organizações sociais e decidir sobre a entrada, o trânsito e a permanência de pessoas não indígenas em suas terras. As de número 7, 12 e 13, se não interpretadas de maneira adequada, podem transferir de forma gratuita áreas para a implantação de infraestrutura alheias às necessidades dos índios. Por fim, as condicionantes 8, 9 e 10, ignoram a comprovada e eficiente preservação ambiental em terras indígenas. (YAMADA & VILLARES, ibdem).
            No entanto, ainda é cedo para se perguntar quais as implicações reais dessas condicionantes. 

[Além disso, está em discussão no Congresso Nacional, até o presente ano de 2013, a PEC 215, que transfere do Executivo para o Legislativo o poder de "aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas" (ementa da PEC 215). Esta alteração na Constituição Federal trará um retrocesso sem limite ao direito indígena, já que o Poder Legislativo não possui caráter técnico, mas sim político, e é dominado pela bancada ruralista, os latifundiários que a cinco séculos usurpam o território indígena.]²



CONCLUSÃO

Como vimos, a prática da política indigenista no Brasil é um processo onde a principal vítima sempre foi os próprios povos indígenas. Neste processo, a ideologia integracionista representa o farol que ilumina o caminho e as mentes que agem em benefício da formação de um Estado-nação nos moldes do pensamento europeu, cujas bases estão nas legislações incidentes sobre os indígenas, construída para viabilizar o plano da integração, de constituir uma etnia-nacional.
            No entanto, não conseguiu completar este propósito. E hoje, conforme defende Fernandez (1997) devido ao momento atual da pós-modernidade, com as redes sociais globais, e a educação bilíngüe nas comunidades, estão sendo fortalecidas as sociedades indígenas na América, e no mundo. Surgindo lideranças conectadas com organismos internacionais e dispostas a utilizarem estes instrumentos como forma de auto-afirmação.
Esse momento global está possibilitando a comunicação e organização de movimentos e instrumentos legais internacionais que reivindicam maior autonomia aos povos, em contraposição ao neo-liberalismo que tudo privatiza e torna mercadoria.
Os conflitos continuam, o episódio de julgamento da validade do processo de homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol demonstrou que os mesmos interesses e personagens que expandem a fronteira colonial há cinco séculos não frearam seu propósito. Mas por outro lado, os povos que antes eram ludibriados por fúteis presentes, hoje se utilizam das mesmas ferramentas que esta sociedade criou. Inclusive no púlpito da Corte Suprema brasileira, travestidos da forma que a etiqueta ocidental exige, mas sem perder sua índole étnica, como foi com Joênia Wapixana, advogada de defesa do caso da terra indígena, representando seu povo e parentes.
Apesar dos avanços, apenas quando nossa sociedade finalmente respeitar às diferenças étnicas, com uma política indigenista exercida para os índios e com plena participação dos povos, inclusive com eles ocupando cargos de decisão, o Brasil por fim será um grande país que se orgulhará de sua diversidade biológica e cultural.

BIBLIOGRAFIA

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¹ No período de 1621 a 1775 o norte do país possuía uma administração independente do Governo-Geral do Brasil, subordinada diretamente à Coroa Portuguesa, o Estado do Maranhão, que incluía a Amazônia.

² Trecho adicionado pelo editor do blog, não consta no artigo original.


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